domingo, 29 de março de 2015

CONSERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO EM ALMADA

Uma reflexão sobre casos concretos

 Ermida de São Sebastião (década de 1980) (SIPA)


Portugal, enquanto membro da UNESCO, foi um dos signatários da chamada Carta de Paris de 1972, ou seja da «Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural», na qual se determina no seu artigo 4.º que:
«Cada um dos Estados parte na presente Convenção deverá reconhecer que a obrigação de assegurar a identificação, protecção, conservação, valorização e transmissão às gerações futuras do património cultural e natural referido nos artigos 1º e 2º (ou seja monumentos, conjuntos, locais de interesse e património natural) e situado no seu território constitui obrigação primordial. Para tal, deverá esforçar-se, quer por esforço próprio, utilizando no máximo os seus recursos disponíveis, quer, se necessário, mediante a assistência e a cooperação internacionais de que possa beneficiar, nomeadamente no plano financeiro, artístico, científico e técnico».

Estas questões da conservação do património cultural, em especial do de natureza religiosa, levantam-se sempre na praça pública quando algumas vozes vêm contestar o apoio (ou mais concretamente o volume do apoio) dado pelo Estado e pelas Autarquias Locais à Igreja Católica para a conservação do seu património, seja este de natureza móvel, como no restauro de pinturas e alfaias e paramentos litúrgicos, ou imóvel, no restauro ou reedificação de actuais e antigos espaços de culto entretanto caídos na ruína ou adaptados a «funções profanas».

De facto, ainda que alguns não concordem com a perspectiva de haver uma relação estreita entre o Poder político e a Igreja em matéria da conservação do património cultural, tal relação é ainda assim a única viável em defesa do interesse público, é que uma coisa é não concordar com a Igreja Católica enquanto instituição e eu, como outros, em algumas coisas nem sempre com esta concordamos (no todo ou em parte), outra é querer omitir uma realidade histórica, artística e cultural que é visível em todo o país e se faz manifestar das mais diversas formas – mais de ¾ de todo património cultural português (material e imaterial) tem ou teve em um determinado período da sua existência uma função religiosa – património cuja recuperação e conservação implicará muitas vezes o seu regresso à sua função inicial, que era o de ser um espaço ou objecto de culto, como foi e é o caso, por exemplo, da problemática Ermida de São Sebastião de Almada, cuja recuperação e devolução ao culto pela Câmara Municipal de Almada em 2009 tem sido alvo de críticas por alguns almadenses.

O exemplo da acção da Câmara Municipal de Almada, a propósito quer das obras de reedificação da Ermida de São Sebastião, quer do restauro de obras de arte existentes na Ermida da Ramalha, é às vezes contestada pelo facto de, em ambos os casos, se tratarem de espaços que funcionam ou passaram a funcionar como lugares de culto, ainda que, no caso de S. Sebastião, se trate de um espaço que só parcialmente foi entregue à paróquia do Pragal (Cristo Rei), sendo a sua utilização regulada por «contrato em regime de comodato, com a validade de 30 anos que estabelece que a Fábrica da Igreja Paroquial do Cristo-Rei utilize a igreja para celebrações religiosas e a Câmara Municipal de Almada possa usar a ermida para promover espectáculos musicais e exposições», tal foi o caso do Festival «Sons de Almada Velha», o qual se realiza anualmente desde 2011 e que inclui sempre um ou dois eventos na Ermida de São Sebastião.

Por outro lado, ainda que nem todos partilhem desta visão, é um facto que aqueles dois espaços, no campo do património histórico e cultural de Almada, constituem-se em dois edificados únicos, nomeadamente pela sua antiguidade:
- a Ermida de São Sebastião, edifício classificado como Imóvel de Valor Concelhio / Interesse Municipal desde 1986, reedificada entre 1732 e 1739 pela Câmara Municipal de Almada, mas cuja construção original foi feita por ordem de D. João III em 1535 (aliás nota histórica que só foi possível de ser identificada por uma inscrição encontrada nos trabalhos arqueológicos realizados aquando da sua recuperação), constitui um dos poucos edifícios de matriz barroca joanina do núcleo histórico de Almada (núcleo profundamente abalado pelo terramoto de 1755);
- a Ermida da Ramalha é uma das mais antigas capelas do distrito de Setúbal, tendo sido edificada em 1456 e reedificada no século XVII;

Inscrição na tijoleira primitiva da Ermida de S. Sebastião
(Museu da Cidade)

Mas são também relevantes pelo valor artístico de alguns dos elementos que os compõem, como a cantaria barroca de São Sebastião e as telas barrocas da Ramalha; e ainda pela sua importância na cultura imaterial popular por estarem ligados à tradicional Romaria do São João da Ramalha, com origens certas no século XVIII, mas cuja tradição a faz remontar aos princípios da nacionalidade!

Maquete do restauro da Ermida S. Sebastião (2005-2009)
(Arquitecta Maria José Lopes)

Se quanto aos aspectos técnicos e de planeamento não posso falar, por falta de conhecimentos que me permitam discutir em pormenor os critérios e as prioridades municipais em matéria de política de recuperação e conservação do património, é ainda assim certo que existem no concelho de Almada outros espaços que mereceriam igual e urgente intervenção, como sãos os casos da:
- Fábrica do Caramujo, edifício industrial cuja construção, no fim do século XIX, foi pioneira no uso do betão armado em Portugal; do
Fábrica do Caramujo

- Lazareto Novo do Porto Brandão, considerado à época da sua construção (década de 1860), o mais moderno estabelecimento sanitário do género em toda a Europa; da
Lazareto Novo do Porto Brandão

- Ermida de São Tomás de Aquino, exemplar raro de arquitectura manuelina no concelho; ou ainda da

Ermida de São Tomás de Aquino (1980) (SIPA)

- Torre Velha de São Sebastião da Caparica, que além de Monumento Nacional e lugar de importância histórica singular (por exemplo no período da Restauração, tendo sido lugar da prisão de D. Francisco Manuel de Mello, figura maior das letras portuguesas do século XVII), é um dos raros exemplares ainda existentes em Portugal de uma fortificação militar do século XV e XVI construída segundo o modelo italiano, constituindo por isso um dos primeiros edifícios de cunho renascentista a ser edificado em Portugal!
 
Torre Velha de São Sebastião da Caparica (2015)

Estou consciente que muitas destas intervenções estariam e estão oneradas por questões económicas, políticas e administrativas que, ou ainda não foram possíveis de desbloquear, ou que obrigam a cuidado e pensado planeamento, pelo que as opiniões que usam estes exemplos para criticar a intervenção dos decisores municipais, ainda que admissíveis no campo da discussão das prioridades da política cultural local, são contudo menos razoáveis quando omitem a diferença na escala de intervenção ou subvalorizam a importância que o património religioso acima referido igualmente tem na história e cultura municipal.

Devemos ainda assim perguntar e eu pergunto: O que é mais correcto fazer na recuperação de um espaço que, com quase cinco séculos de existência, à excepção de um período de pouco mais de 100 anos, quase sempre funcionou como lugar de culto?
- Que se recupere o espaço, mas adaptando-o a uma outra função digamos mais «profana»; ou
- Que uma vez recuperado seja devolvido a essa função primeva;
Eu diria que «ambas as duas» (sic) são correctas, ou melhor que ambas as possibilidades devem sempre ser consideradas, adoptando a solução que melhor defenda o interesse geral da população e esse é, até melhor opinião, que uma vez recuperado o património deve ser valorizado, através da sua utilização e apropriação pelos munícipes, e deve ser conservado para não se perder o investimento feito na sua recuperação!

Aliás, estas duas vertentes, a da valorização e a da conservação, andam sempre ligadas, uma vez que se este património não for «apropriado pelas populações», acabará inevitavelmente por voltar a degradar-se, até pela simples razão de que a opinião pública não valoriza aquilo que desconhece ou que não é tido como «o seu património»!

Uma parte desta apropriação, sobretudo quando existem práticas religiosas já estabelecidas, sejam elas de carácter regular, como a missa dominical, ou extraordinário, como a realização de procissões e romarias, terá forçosamente ser através da utilização cultual destes espaços.


 

São Sebastião e Sagrada Família (telas do séc. XVII ?)
(Ermida da Ramalha)

É razoável que sendo Portugal um estado laico, ou seja que não tem uma religião oficial (situação que ainda hoje acontece por exemplo na Arábia Saudita ou no Bhutão), não discrimine os seus cidadãos e as suas instituições em função da sua prática (ou não) religiosa, e tal de facto acontece em Almada e em outras localidades do país, por exemplo através do apoio ao associativismo. Contudo um estado laico não pode, nem deve, ser alheio à realidade concreta da sua sociedade e cultura, sendo a sua obrigação proteger e salvaguardar de uma forma não discriminatória as manifestações culturais materiais e imateriais da sua população, tenham estas um cunho mais ou menos popular, mais ou menos erudito, mais profano ou mais religioso.

Em suma, querer reduzir a política cultural e de conservação do património a uma questão da separação da Igreja do Estado, não nos pode levar a ser insensíveis a uma verdade que é histórica e que deve ser compreendida e preservada, sob pena de os exemplos de destruição e ruína patrimonial, a que por vezes vamos assistindo, acabem por se tornar a norma, em vez da excepção!

É a minha convicta opinião, respeitando as demais, que aos homens que amam a cultura não se pede que sejam beatos, mas que sejam sensatos!


Por fim, e com a devida vénia ao historiador de arte Prof. Dr. Vítor Serrão, deixo aqui um excerto da opinião de alguém que, com os seus mais de 40 anos de reflexão sobre estas matérias, nos faz um retrato histórico, cultural e social objectivo sobre a questão do nosso território em ruínas, quando afirma que:
«O nosso país constitui, de há muito, um exemplo tristemente esclarecedor dessa sanha descontrolada de anti-património. As fases subterrâneas da História portuguesa pululam de ondas de descaracterização, de desleixo e de abandono de parte da sua memória arquitectónica, outrora significativa, que pura e simplesmente é deixada em estado de silenciosa agonia, em nome de uma ideia abastardada de progresso. Não só as guerras e as catástrofes naturais, os megassismos e os incêndios, as invasões estrangeiras e as fases de conturbação intestina, os maus restauros e as ondas de iconoclastia, contribuíram para essa perda do património comum, mas também a inconsciência das tutelas, a ambição de especuladores sem escrúpulos, a desmemória de muitas comunidades e a falta de instrumentos legais de preservação e de salvaguarda».

(Vítor Serrão, "Portugal em ruínas. Uma história cripto-artística do património construído", in Gastão de Brito e Silva, Portugal em ruínas, 2014, p. 12-13)

Compete a nós, os que defendem a cultura, não deixar que a «desmemória» permita continuar a «desconstrução do património» prolongando o estado de «anti-património», em que infelizmente algum dos espaços almadenses estiveram, e outros continuam a estar, há demasiado tempo!


RUI MANUEL MESQUITA MENDES
Caparica, 29 de Março de 2015


Outras leituras:
Vítor Serrão, "Portugal em ruínas. Uma história cripto-artística do património construído" [introdução ao livro Portugal em ruínas], 2014.
Gastão de Brito e Silva, Portugal em ruínas, 2014.
Rui Neves Caetano, "Desconstruindo o Património", in Actas do 2.º Encontro do Património de Almada e Seixal, 2014.




Algumas fontes:



Ângela Luzia [Coord.], Luís de Barros, Fernando Henriques e Telmo António [Textos], Exposição «Chão de Memórias», Museu da Cidade, Almada, Novembro, 2012