segunda-feira, 15 de março de 2021

GIUSEPPE NELLI, um escultor e arquitecto italiano, e a estatuária da fachada da Igreja do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (1708-1714) [texto revisto]

 

Fig. 1: Igreja do Mosteiro de Alcobaça, Col. Rui Mendes (2008)

Agora que se vai avançar com o restauro da fachada da Igreja do Mosteiro de Alcobaça, é o momento oportuno para voltar a falar da fachada barroca da mesma Igreja, da questão da sua autoria – arquitectónica, técnica e artística – e da sua importância no contexto histórico e artístico da Arte Barroca no Mosteiro de Alcobaça, como oportunamente fizemos em recente comunicação em parceria com Miguel Portela [1].

 

O BARROCO NO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA: ESTADO DA QUESTÃO

Mesmo sem procurar fazer um estudo crítico exaustivo da História da Arte Barroca e da sua expressão na Ordem de Cister em Portugal e em particular no Mosteiro de Alcobaça (Fig. 1), importa fazer alguns considerandos críticos sobre a mesma.

A primeira grande constatação acerca da presença da Arte Barroca em Alcobaça é precisamente marcada por uma «não-presença», ou seja uma ausência substancial, sobretudo de peças, mas também de decoração, tão ou mais significativa quando comparada com outros espaços conventuais nacionais, mesmo dentro do âmbito cisterciense. Tal fica a dever-se a um conjunto de vicissitudes de vária ordem, como o Terramoto de 1755, as Invasões Francesas, o abandono do Mosteiro (1833), a reconversão dos espaços e o posterior restauro «integralista» da igreja feito nas décadas de 1930 e 40 pela Direção dos Monumentos Nacionais, os quais contribuíram, cada um à sua medida, para um conjunto reduzido de peças e decoração em estilo Barroco no Mosteiro, sobretudo no espaço da igreja e áreas anexas.

No presente, depois da referida intervenção nos anos trinta e quarenta do século XX, que retirou do corpo da igreja, da capela-mor e do respetivo deambulatório a maioria da sua estatuária e talha barroca, incluindo um magnífico sacrário em forma de orbe com resplendor de que, além algumas fotografias a preto e branco, se conhece apenas pela descrição dele feita por alguns cronistas e viajantes; a Arte Barroca existente e visível no Mosteiro de Alcobaça reduz-se praticamente aos núcleos de estatuária em terracota existentes no Santuário das Relíquias, na Sala dos Reis (nova), na Sala do Capítulo (originalmente na Capela-mor) e nas Capelas do Redentor e do Trânsito de São Bernardo.

Alguns espaços barrocos como a nova sacristia ou a magnífica Capela de Nossa Senhora do Desterro (a que nos dedicamos no estudo onde publicámos originalmente este texto) são ainda praticamente desconhecidos dos visitantes por estarem a maior parte das vezes inacessíveis. 

Como bem recorda Pedro Penteado, é a valorização económica do Mosteiro que permitirá desenvolver quer a sua atividade cultural no século XVII, - incluindo a continuação da publicação dos vários volumes da Monarchia Lusitana, de que foram autores, entre outros, três dos seus abades trienais, Fr. Bernardo de Brito, Fr. António Brandão e Fr. Manuel dos Santos, que também foram cronistas-mores do Reino ou da sua Congregação [2] - ; quer as várias iniciativas de valorização do espaço religioso da Abadia, como a feitura de um novo sacrário e instituição do “Laus perennis” no mosteiro, em 1672, além de outras intervenções [3], assim descritas: “Um conjunto significativo de obras, símbolo do vigor e da renovação que se operava no Mosteiro de Alcobaça, e onde se procurou implementar um programa iconográfico apologético e justificativo da sua importante posição senhorial (…) «estas obras desenrolaram-se na hospedaria, na noviciaria, na Sala das Conclusões, que abrigou as estátuas dos reis portugueses até 1765-1769 e onde se reunia o capítulo geral dos monges bernardos portugueses, na livraria (1654), na enfermaria dos criados, no claustro de D. Afonso VI (1656-67), na portaria (1684-87), e na Capela do Desterro, construída no final de Seiscentos. Trata-se de um conjunto de intervenções que Rafael Moreira considerou terem operado "uma mudança na escala e na concepção espacial" da abadia e que serviram de "palco ao florescimento da estatuária e à plena eclosão do Barroco" alcobacense. Destacam-se, neste contexto, o relicário mandado erguer por Frei Constantino de Sampaio na nova sacristia, o retábulo da Morte de São Bernardo e o conjunto escultórico da capela-mor, terminado em 1678, no abaciato de Frei Sebastião de Sotomaior, obra atribuída aos chamados «barristas de Alcobaça”. [4]

Desta introdução do gosto Barroco em Alcobaça destacam-se, numa primeira fase de 1670 e 1690, sobretudo as obras da escultura e talha ligadas: à Capela Relicário (1669-72); às estátuas régias de barro do Claustro dos Reis (1675), e reforma da Capela-mor em que o retábulo quinhentista com “painéis de santos da ordem que antigamente vestiam a parede interior foi substituído por fábrica mais moderna, feita em 1676 de pedraria e oitavada com figuras de grandes dimensões de diversos santos [4]; e ao novo Sacrário (1678); à obra da Capela do Redentor (1675-78); e à magnífica Capela do “Grupo Morte de S. Bernardo” (1687-90), que só ficará terminada no triénio de Fr. Pedro de Lencastre (1702-05).

A segunda fase começou na década de 1690 e é marcada pela progressiva introdução da arte barroca também na arquitetura claustral, podendo ser o primeiro exemplo disso a magnífica Capela de Nossa Senhora do Desterro!

Já o frontispício da igreja de Alcobaça (Fig. 1), obra do primeiro quartel do século XVIII, é também um dos testemunhos do Barroco, este bem mais difícil de interpretar, sobretudo porque nele não se adoptou um estilo arquitectónico singular, como aconteceu por exemplo nas igrejas dos mosteiros cistercienses intervencionadas na mesma época (Salzedas, Seiça e Bouro), mas procurou antes integrar na nova fachada barroca os elementos góticos, como o portal de 7 arquivoltas quebradas e a rosácea.



Fig. 2: São Bernardo, fachada da Igreja de Alcobaça, C0l. Jornal Alcoa

Esta fachada, dividida em 3 registos e 3 panos delimitados por pilastras com capitéis compósitos, é assim uma solução mista em que os elementos góticos são enquadrados por nichos e estatuária barroca (Fig. 2), só adoptando uma plena linguagem barroca no 3.º registo, com um frontão aberto de volutas entre as torres sineiras abertas por arcos plenos e delimitadas por pilastras com os mencionados capitéis compósitos. A estatuária da fachada, de produção italiana, carece ainda de um estudo artístico e crítico semelhante aos que se têm feito sobre restante estatuária barroca existente no Mosteiro, estudo que nos permita compreender como é que esta se enquadra e relaciona, ou não, com a melhor produção da época e qual o calibre do artista, ou artistas, que a realizaram.

Se quanto à oficina ou oficinas que lavraram a cantaria e construíram a fachada, a documentação permite-nos saber data e autor, através da presença do mestre canteiro Gonçalo Afonso, o mestre de alvenaria Rafael da Fonseca, o mestre das obras do Mosteiro António Rodrigues de Carvalho, e de outros mestres, objecto de recente comunicação de Miguel Portela, e até a estatuária da fachada em “jaspe fino vindo de Itália” tem também autor, José Nelli, que recentemente divulgamos em artigo dedicado à escultura religiosa, em Lisboa, já quanto ao desenho da fachada permanece a dúvida. [6]

Muitas das campanhas de obras barrocas do Mosteiro de Alcobaça e em algumas casas da Ordem foram favorecidas pelo empenho da Casa Real, tal foi o caso das obras do claustro de D. Afonso VI (1656-67) e do Dormitório da Enfermaria (1669-72) [7], todas atribuídas ao arquiteto régio, o beneditino Fr. João Turriano (f. 1679), a quem também se têm atribuído a fachada da igreja, um claro erro cronológico e artístico, pois nem este mestre tinha uma linguagem decorativa tão elaborada, nem tão pouco era vivo quando a fachada foi iniciada, havendo já falecido há cerca de 20 anos.

Outros arquitetos que podem também ter estado envolvidos nas obras de Alcobaça neste período foram os arquitetos régios João Nunes Tinoco e João Antunes, ainda que nada transpareça, até à presente data, nas fontes conhecidas.

Da documentação consultada, o único arquiteto que se sabe ter trabalhado no início do século XVIII nas obras da Ordem de Cister em Portugal foi o arquiteto maltês Carlos Gimac [8], aqui presente desde 1695, com obra documentada em Arouca, Salzedas e Lorvão (1704), sendo por isso de admitir o seu possível envolvimento no projeto inicial, quer do frontispício da Igreja do Mosteiro iniciada por D. Pedro de Lencastre (1702), quer da reforma da Capela de Nossa Senhora do Desterro no tempo da administração e padroado de Fr. João Paim (1698-1704).

Curiosamente este Carlos Gimac acompanhou o Marquês de Fontes, sobrinho do próprio D. Pedro de Lencastre, a Roma em 1712, onde trabalhou para D. João V, fazendo riscos dos coches reais da “Magnífica Embaixada do marquês de Fontes” realizada em 8 de julho de 1716, que hoje se podem admirar no Museu dos Coches. [9]

 

 

GIUSEPPE NELLI: DADOS DA SUA INTERVENÇÃO EM ALCOBAÇA

Como referido no texto acima mencionado, a estatuária da fachada da Igreja do Mosteiro de Alcobaça, em “jaspe fino vindo de Itália”, tem um autor, José ou Giuseppe Nelli [6].

A informação da sua proveniência de Itália não é propriamente inédita, tendo sido já publicada em 2012 (vide Anexo 1) e noutros textos.

Contudo, conforme referimos em 2017, apesar de ser um dos monumentos portugueses mais estudados, a documentação alcobacense carecia ainda de um estudo aprofundado, nomeadamente, quanto às campanhas de obras ali realizadas no século XVIII e primeiras décadas do século XIX, algo que tem sido colmatado nos últimos anos por uma revalorização do fundo documental alcobacense, não só o monástico, como também os fundos paroquiais e notariais.

Referimos então, a título de exemplo, o pouco que ainda se conhecia da reforma do frontispício encetada nas primeiras décadas do século XVIII, para a qual trabalhou um desconhecido mestre escultor italiano de nome Giuseppe Nelli, referido nas folhas de despesa, quer do triénio de 1708-11 (do abade Fr. António de Quental) no lançamento do “que se deu ao Italiano que mandou vir as imagens de jaspe para o fronte espício com o dezembarque dellas e condução q fez até Villa Nova (…) 1:116$880” [10], quer no triénio seguinte de 1711-14 (do abade Fr. Félix de Azevedo), no que “Despendeuçe em todos os três annos com (…) obra do Frontespício com pedreiro e serventes (…) 2:472$370”, “à conta das imagens que vieram para o Fronte espício a Joseph Nelli italiano (…) 200$000 rs” e na “condução da Imagem de N. P. São Bernardo que veio de Vila Nova (…) 46$900 rs” [11].

Estes dados vieram ao meu conhecimento quando, em 2014, ainda frequentando o curso de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), procurei novas fontes para desvendar o mistério de várias intervenções barrocas no Mosteiro de Alcobaça no século XVIII, em particular a reforma da fachada da igreja e uma possível ligação da mesma à figura, ainda pouco conhecida na história da Arte em Portugal, do arquitecto Carlos Gimac, de que oportunamente dei conta em breve estudo produzido para a disciplina de Teoria da História da Arte (2013-2014) regida pelo Prof. Vítor Serrão.


Fig. 3: Mausoléu de Mons. Giuliano Viviani, no Campo Santo [Cemitério] de Pisa, obra de Giuseppe Nelli, segundo desenho de Giovanni Battista Foggini, mandado edificar pelo sobrinho Cosimo Viviani (1697). https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Monumento_a_giuliano_viviani_antonucci.JPG

Ao encontrar pela primeira vez esta figura desconhecida na historiografia alcobacense disponível à época - do escultor italiano Giuseppe Nelli -, procurei obter mais elementos acerca do mesmo (*). De facto, consultando alguns dados dispersos, pude apurar que Nelli era um escultor praticamente desconhecido, ao que parece natural da própria Carrara, célebre centro de produção marmórea de Itália, activo no fim do século XVII, tendo como única obra conhecida nas fontes mais antigas, o Mausoléu de Giuliano Viviani no Campo Santo [Cemitério] de Pisa (1697) (Figs. 3 e 4), uma obra «de arquitetura e escultura executada no modelo de Gio Battista Foggini» por Giuseppe Nelli aluno do conhecido arquitecto e escultor o Cavaleiro Bernini, conforme constava em Alessandro da Morrona – Pisa Illustrata Nelle Arti Del Disegno, Tomo 2 (Prima Ed., Francesco Pieraccini, 1787), Seconda Ed., Livorno : Presso Giovanni Marenigh, 1812, pág. 320: «Il Cenotafio di due colonne di verde antico e da bei marmi di Carrara adorno contiene le ceneri di Giuliano Viviani pisano che fù Decano di questa Basilica e Professore di sacri Canoni nel Patrio Liceo che di poi fù Vescovo della Città dell’lsola e che finalmente fù condecorato dell Arcivescovado di Cosenza. Il lavoro sì di Architettura che di Scultura nel Simulacro giacente fù eseguito sul modello di Gio Battista Foggini da Giuseppe Nelli allievo del Bernino Scultore, e Architetto assai noto. L'iscrizione è la seguente:

D. O. M. . Juliano Vivianio Antonii Filio doctissimo Juris utriusque Professori, qui Pisanum Gymnasium doctrinae praestantia, Patriam, et genus nominis , claritate jus Pontificium immortalibus ingenii monumentis illustravit, qui amplissimos in Patria honores adeptus ampliores meritus ad exteros quoque lumen gloriae suae diffudit, et Urbano VIII. Pont. Max. ob integritatem vitae, morumque candorem acceptissimus Insulae Urbis Antistes, et Comes, ac deinde Cosentinus Archiepiscopus creatus est, majora consecuturus, nisi morte fuisset in medio honorum cursu interceptus. Hanc Corporis Imaginem, cum animi extet in ejus libris, et memoria posterum Cosimus Vivianus Fratris Filius posuit. An. Sal. M.DCIIIC.» (1697).

Outra fonte mais antiga, que repete os mesmos dados, embora de de forma mais sucinta, é Giovacchino Cambiagi – Il Forestiero Erudito o Sieno Compendiose Notizie Spettanti alla Cittá di Pisa (…), Pisa : Pompeo Polloni e figli, 1773: «[pag. 81] (…) Il deposito dell'arcivescovo Giuliano Viviani pisano è di Giuseppe Nelli allievo del Cav. Bernino sul modello di Gio. Batista Foggini».

 

Sendo que estas duas se baseiam, muito provavelmente, noutra fonte ainda mais antiga, Pandolfo Titi – Guida per il Passeggiere Dilettante di Pittura, Scultura, ed Architettura Nella Città di Pisa, Lucca : Filippo Maria Benedini, 1751: «[pag. 66] CAMPO SANTO. Forse non sarà venuto mai in pensiero a popolo alcuno nell' Italia, né in tutta l’Europa, di fare una così sontuosa e magnifica fabbrica per riporre e conservare le rispettabili ossa de’ fedeli cristiani., come ebbero nell'idea di fare quei popoli di questa antichissima città di Pisa nell'anno 1278 di nostra salute, nel qual tempo dettero principio a quella bellissima fabbrica, stata fatta per tale effetto tutta adornata di finissimi marmi, quale considerandola nella sua magnificenza, e grandezza, facilmente si verrà in cognizione della grandissima spesa fatta per perfezionarla. Il disegno, che come si vede fatto sul gusto di quei tempi alla (…) [pag. 77] (…) Il deposito dell’arcivescovo Giuliano Viviani pisano, fu fatto nelle scuole di Carrara da Giuseppe Nelli scolare del cavalier Bernini, sul modello che ne fece Giovan Battista Foggini».

De estudos e fontes mais recentes se descobre que Nelli passou pela Academia de S. Lucas de Roma, vencendo um prémio na terceira classe de escultura em 1682, conforme nos revela Francesco Freddolini, "Effigi L’Insigne e singolare Virtù. Monumenti funebri dei professori dello Studio tra Sei e Settecento", in Sculptura a Pisa nell’età moderna: Le sepolture dei docenti dello Studio, dir. Cinzia Maria Sicca, PLUS-Pisa University Press, 2007: «[pag. 99] Il carrarese, del quale non si conoscono opere, fu piu probabilmente allievo dello stesso Foggini. Il giovanissimo Nelli vinse infatti il primo premio della Terza classe di scultura al concorso dell’Accademia di San Luca nel 1682, anno in cui lo studio di Foggini, e i Toscani in generale, quasi colonizzarono l’istituzione romana: nella Prima classe di scultura Giuseppe Piamontini e Anton Francesco Andreozzi si aggiudicarono il primo premio ex aequo, mentre per la pittura i vincitori furono i fratelli Giuseppe Nicola e Tommaso Nasini, rispettivamente nella Prima e Seconda classe» (cit. Cipriani, Angelo – Valeriani, E. (a cura di), I disegni di figura nell’Archivio Storico dell’Accademia di San Luca, 3 Vol., Roma, 1988, I, pp. 99-100). Vide Anexo 2.

 

Fig. 4: Mausoléu de Mons. Giuliano Viviani (1697).

No âmbito da história da Arte em Itália, o nome de Nelli é assim, aparentemente, uma figura desconhecida, sendo mais conhecido um homónimo no século XIX, Giuseppe Nelli (1826-1873), ourives da prata e “scultore in metallo” romano.

Contudo, perante uma evidente falta de elementos complementares, não foi possível, até à data, completar o quadro histórico e artístico da encomenda da estatuária para a nova fachada da igreja do Mosteiro de Alcobaça, começada nos triénios de 1708-11 e 1711-14, e concluída em 1725 (*).

Seja de que modo for, o que estes documentos confirmam é não só a já conhecida origem italiana das esculturas da fachada de Alcobaça, mas também um nome, Giuseppe ou José Nelli, que foi pago por algumas delas, seja ele ou não o seu autor, sendo por isso ainda mais oportuna a sua revalorização e estudo, no âmbito dos restauros agora empreendidos, e de que se aguardam conclusões (*).

 

Rui Manuel Mesquita Mendes

ALMADA, 15 de Março de 2021.

(*) Texto revisto em 18 de Abril de 2021.

 

Notas:

[1] MENDES, Rui Manuel Mesquita; et PORTELA, Miguel – “A Capela de Nossa Senhora do Desterro (1690-1740): Uma pequena jóia da arte e arquitetura barroca no Mosteiro de Alcobaça”, in Cister: Actas do II Congresso Internacional sobre Mosteiros Cistercienses, Tomo 1: Património e Arte, Coord. José Albuquerque Carreiras, António Valério Maduro, e Rui Rasquilho. Alcobaça: Hora de Ler, 2019, pp. 157-200, p. 177-181.

[2] PENTEADO, Pedro – “Alcobaça", in Dicionário de História Religiosa de Portugal, dir. Carlos Moreira Azevedo, Vol. I: A-C. Círculo de leitores, Rio de Mouro, 2000, p. 37. No século XVIII, foram também cronistas-mores do Reino ou da Congregação, outros três abades, Fr. Manuel da Rocha, Fr. Manuel de Figueiredo e Fr. Fortunato de São Boaventura.

[3] Para algumas das principais obras deste período vejam-se, entre outros, Fr. Manuel de Figueiredo, Descrição da Igreja de Alcobaça em 1781, publicado em CORREIA, Vergílio – “O retábulo da capela-mór de Alcobaça", in O Instituto: jornal scientifico e litterario. Vol. 81 (1931), pp. 175-186. Veja-se também Documentos de várias tipologias, de carácter histórico, canónico e litúrgico, em prosa e verso, relativos sobretudo à Ordem de Cister em Portugal / compilados por Frei Bento de São Bernardo – Manuscrito – 3.º vol., Contas das despesas com as obras feitas em Alcobaça entre 1618 a 1696, ALC. 301, fls. 280-283, http://purl.pt/30349; e BERNARDO, Alex Sousa – O palácio abacial de Alcobaça: um palácio para um abade. Dissertação de Mestrado em História da Arte, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Edição do autor, Coimbra, 2009.

[4] PENTEADO, Pedro – “Alcobaça", in Dicionário de História Religiosa de Portugal,… Op. Cit., p. 36-37.

[5] Assim descritos em 1840, vd. O Panorama. Jornal Litterario e Instructivo, publicado pela Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, Lisboa, Tomo IV, n.º 154, 11 de abril de 1840, pp. 113-116.

[6] MENDES, Rui Manuel Mesquita – “Novos contributos para a história da escultura religiosa em Lisboa (séculos XVI, XVII e XVIII)”, in Invenire: Revista de Bens Culturais da Igreja, N.º 14, 2017, pp. 6-22, p. 15, nota 32.

[7] COSTA, Padre António Carvalho da – Corografia Portugueza, e Descripçam Topografica do Famoso Reyno de Portugal, … Op. Cit., pp. 124-126; MARQUES, Maria Zulmira Albuquerque Furtado – Cronologia do Real Mosteiro de Alcobaça, [s./l.], Óbidos, 2014, p. 89.

[8] Veja-se sobre Carlos Gimac a obra CARVALHO, Armindo Augusto Ayres de – D. João V e a Arte no seu tempo, Edição do autor, Mafra, 1962, Vol. II, pp. 241-304.

[9] MENDES, Rui Manuel Mesquita – Carlos Gimac e Manuel Rodrigues dos Santos: Dois arquitectos ao serviço de D. João V na Roma do Settecento e a sua importância nos modelos italianos do Barroco português, Lisboa, 28 de maio de 2014, disponível em <https://www.academia.edu/16304799/>, pp. 6-7.

[10] ANTT, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Liv. 81, fl. 9, nota de 29-4-1711, apud. MENDES, Rui Manuel Mesquita – “Novos contributos para a história da escultura religiosa em Lisboa (séculos XVI, XVII e XVIII)”, in Invenire: Revista de Bens Culturais da Igreja, N.º 14, 2017, pp. 6-22, p. 15, nota 32, disponível em <https://www.academia.edu/36240337/>.

[11] Idem, Liv. 81, fls. 38 e 39, notas de 29-4-1714, apud. Idem, Ibidem.

 

Anexo 1:

As diversas imagens que ornamentam esse mesmo frontispício, são em mármore de Carrara e vieram de Itália – de barco até Lisboa, e, depois, de barcaça até Vila Nova da Rainha, então porto fluvial no rio Tejo.

A imagem de S. Bernardo, à esquerda de quem olha para a fachada (onde faz pendant à de S. Bento, do lado direito), foi colocada em 19 de Novembro de 1711, após uma viagem cuja parte final foi um tanto atribulada. É precisamente o relato, cheio de pormenores interessantes, escrito por Fr. Alberto de São José (c. 1650-1723), cartorário-mor do Mosteiro, de dois incidentes ocorridos durante a última fase do transporte, que oferecemos aqui aos leitores.

«Sucessos que sucederam quando se foi buscar o Nosso Padre S. Bernardo para o frontispício, que estava em Vila Nova. Ano de 1711.

Aos 3 dias do mês de outubro de 1711, indo desta Vila de Alcobaça um carro ferrado de quatro rodas de grande peso, saindo o Irmão Fr. Alexandre do Sacramento da Quinta do Archino, que é da Marquesa de Arronches, e a mais gente que ia na companhia, em que ia também o mestre aparelhador Manuel Denis, desta companhia se puseram quatro homens no carro, e, dando em uma sorroda, se tombou o carro e caíram todos, e livraram somente três; porém um que [se] não pôde livrar como os três com tanta pressa, que é um homem a que chamam Manuel Marques, do Casal da Carreira, limite de Monte de Bois, termo desta Vila de Alcobaça, ficou debaixo do carro e, pegando-lhe a roda, o arrastou um pedaço e, ao depois, lhe passou a roda por cima pela cintura e costas e lhe rasgou a véstia e casaca; e logo caiu para a banda.

E parecendo a todos os que iam na companhia que o homem perigava mortalmente, acudiu logo o Irmão Fr. Alexandre a perguntar-lhe o que tinha.

Lhe respondeu o homem que o carro o arrastara e lhe passara por cima, e lhe rasgara a véstia e casaca, e que não sentia nada; e com este trabalho e perigo ficou livre, sem lesão alguma; e se levantou e tornou a pôr outra vez no carro como dantes.»

Extraído de:

Fr. Alberto de S. José, Índice do Cartório de Alcobaça, cf. ANTT, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Liv. 213, fls. 483-484. Leitura, transcrição, atualização ortográfica e notas pelo Prof. Gérard Leroux, antigo Assistente da Faculdade de Letras de Lisboa e responsável pelo Arquivo Histórico da Misericórdia de Alcobaça. Pub.: https://www.oalcoa.com/a-proposito-da-imagem-de-sao-bernardo-um-transporte-atribulado-e-milagroso-i/ (30-7-2012)

 

 

Anexo 2:

Francesco Freddolini, "Effigi I’Insigne e singolare Virtù. Monumenti funebri dei professori dello Studio tra Sei e Settecento", in Cinzia Maria SiccaSculptura a Pisa nell’età moderna: Le sepolture dei docenti dello Studio, PLUS-Pisa University Press, 2007.

(p. 99)

Una simile organizzazione dei lavori dovette essere alia base anche di un altro monumento commemorativo di un professore dello Studio pisano, realizzato sotto la direzione di Giovanni Battista Foggini: quello di Giuliano Viviani, docente di Diritto canonico e in seguito vescovo di Isola e poi arcivescovo di Cosenza.

Il monumento fu eretto in Camposanto nel 1697 dal nipote Cosimo  ma - ancora una volta - nessuna fonte documentaria e emersa finora per ricostruire le circostanze e i personaggi coinvolti nella comissione. Le uniche notizie note si devono ad Alessandro Da Morrona, il quale scrisse che "Il lavoro si di architettura che di scultura nel simulacro giacente fu eseguito sui modello di Gio. Battista Foggini da Giuseppe Nelli, allievo del Bernino scultore e architetto assai noto” (Da Morrona, 1812, III, p. 111).

Da Morrona, che si era già rivelato impreciso nella trascrizione dell’epitaffio sul sepolcro del vescovo nella chiesa di Santa Caterina (Ciardi, 1996b : p. 145, n. 17), potrebbe aver commesso un altro lapsus. Il carrarese, del quale non si conoscono opere, fu piu probabilmente allievo dello stesso Foggini. Il giovanissimo Nelli vinse infatti il primo premio della Terza classe di scultura al concorso dell’Accademia di San Luca nel 1682, anno in cui lo studio di Foggini, e i Toscani in generale, quasi colonizzarono l’istituzione romana: nella Prima classe di scultura Giuseppe Piamontini e Anton Francesco Andreozzi si aggiudicarono il primo premio ex aequo, mentre per la pittura i vincitori furono i fratelli Giuseppe Nicola e Tommaso Nasini, rispettivamente nella Prima e Seconda classe (Cipriani – Valeriani, 1988, I, pp. 99-100). La responsabilità di Giovanni Battista Foggini non dovette essere comunque soltanto progettuale per un monumento che si discosta da tutti quelli analizzati fino ad ora per tipologia e monumentalità. L’effigie del vescovo non e infatti rappresentata da un busto, ma da una statua di dimensioni maggiori del naturale. Questa differenza iconografica e tipologica è sicuramente da imputare al rango del personaggio e alla carica ecclesiastica che rivesti.

Viviani, infatti, non è abbigliato con la toga dottorale, secondo la canonica iconografia dei professori e - piu in generale dei letterati e degli scienziati - ma veste i paramenti sacri. Il vescovo non è riconoscibile come docente dello studio se non per l’epitaffio e per una sua opera poggiata sulie ginocchia. Un fondamentale precedente per Giovanni Battista Foggini, relativamente agli attributi iconografici e alla postura, fu costiuito dal monumento di un celebre docente ed ecclesiastico del XVI secoio, Paolo Giovio (tav. 73), realizzato da Francesco da Sangallo nel chiostro di San Lorenzo a Firenze, che lo ritrasse assiso sulla cattedra vescovile, con i paramenti ecclesiastici connessi al suo titolo di vescovo di Nocera e un libro in mano, attributo della sua professione di professore di Filosofia e Medicina a Padova.

Giuseppe Nelli dovette avere un ruolo marginale nella realizzazione del raffinato monumento pisano, forse da individuare nella realizzazione degli elementi architettonici e decorativi, in parte perduti, e nell’esccuzione di alcuni brani piu incerti dell’ampio panneggio, come ad esempio sul lato sinistra all’altezza delle ginocchia.

Nella statua, infatti, che appare essere una variante di (p. 100) quella del Cardinal Leopoldo (Firenze, Uffizi), anch’essa scolpita da Foggini nel 1697, l’Intervento del Maestro fu indubbiamente sostanziale: lo denunciano la qualità dell’Intaglio dei motivi decorativi della mitria e del piviale, oltre alla complicata postura, e alia raffinatezza net delineare i traiti del volto, perfettamente paragonabili a quelli del Sant’Andrea Corsini in estasi sull’altare della Cappella Corsini in Santa Maria del Carmine a Firenze.

 


domingo, 7 de março de 2021

            PADRE GASPAR DA ROCHA (+1607)

Clérigo natural da Covilhã e Capelão da Misericórdia de Lisboa


Lanço aqui uma breve nota colhida no 2º Livro do Registo Geral de Testamentos de Lisboa sobre um Pe. Gaspar da Rocha (Covilhã, ? + Lisboa, 27.12.1607), clérigo natural da Covilhã, mas que viveu, pelo menos, os últimos 30 anos da sua vida em Lisboa, onde foi beneficiado da Igreja de Nossa Senhora da Conceição durante 12 anos e depois Capelão da Misericórdia.

Não se tratava de um figura desconhecida na história, porquanto já António Baião o identificara em 1580, na documentação da Inquisição, numa passagem de interesse histórico referida por alguns historiadores em estudos subsequentes:

«No dia 6 de fevereiro de 1580 apresentou-se o Pe. Gaspar da Rocha, capellão da misericórdia, natural da Covilhã, para dizer que estando com Fernão d’Araujo, Pedro da Matta e Jorge Farinha, também capellães, fallaram na successão do reino, se devia ser subjeito a Castella por D. Sebastião estar ainda vivo e que o capitulo 11.º de Daniel parecia applicar-se ao caso. Para demonstrar que D. Sebastião estava ainda vivo applicarem-se as palavras de Isaías, cap. 14.º; o confitente foi interrogado, entre outras cousas, porque é que julgava que umas certas palavras (não ser digno de ser rei) se applicavam ao cardeal D. Henrique, respondeu que, por ser sacerdote e não poder casar e ter filhos. Quanto á sua instrucção, disse ter frequentado em Alcalá um curso de Artes, com o qual não foi por deante, mas, que sabe um pouco de latim e cantar. (Nota: Já tem processo.) »

(BAIÃO, António – A Inquisição em Portugal e no Brazil, 1906, p. 207)

 

O Pe. Gaspar da Rocha (Fig. 1), clérigo de missa, fez o seu testamento em 20 de Maio de 1606, o qual viria a ser aprovado em 30 de Setembro de 1606, aberto em 27 de Dezembro de 1607 e registado em 4 de Março de 1608. Nele declara ser residente no Beco do Ourinol e freguês da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Lisboa, pedindo que depois do seu falecimento fosse enterrado na sepultura dos beneficiados ou debaixo do Arco de Nossa Senhora da Luz, onde sua mãe estava enterrada.

Falando da sua família, o Pe. Gaspar da Rocha refere:

- um sobrinho de nome Álvaro, filho de Gaspar Lopes, de Valhelhas;

- uma irmã, de nome Isabel da Rocha;  e

- um irmão de nome Jerónimo da Rocha a quem el Rei fizera mercê dos ofícios da cidade de Damão, de feitor, de alcaide, de tesoureiro dos defuntos, e provedor das obras da fortaleza, por tempo de três anos, mas que este morreu sem entrar a servir.

Fig. 1: Assento de óbito do Pe. Gaspar da Rocha (27.12.1607), Col. Registos Paroquiais, Conceição (Lisboa) (ANTT)

Faz também uma importante declaração sobre a sua pátria natal e o que lá deixara (vide Fig. 2):

«Item declaro que Eu fiz hua Jrmida de Jhu em Covilham na minha propriedade que tenho a fomte de Pallos Afonso a quall propriedade vimcullei a igreja de Sam Paullo domde meus pais heram fregeses e fiz Capella de Nossa Senhora do Parto com a obrigaçam de doze missas cada anno de que já fiz houtro testamento de que mandei ho trellado.

Item mando que a dita Jrmida amde çempre anexa a Jgreja de Sam Paullo de que El Rei hé padroeiro e Mestre pera que o prioll que hora he e os que forem em diamte sirvaõ gozem e pessuam como couza de Sua Magestade e no mais se cumpra o que tenho mãdado (…)

Item mamdo mais que se dem a Comfraria de Nossa Senhora do Parto cita na Jgresa de Sam Paullo da villa de Covilhaã des mill Reis per’as necessidades da dita comfraria os quais se emtreguaõ a Framcisco Vas Covilham pera que os mãde por sua ordem e os emtregem aos mordomos que ao tal tempo forem e se mandara sertidam de como foraõ emtregues».

(ANTT, Registo Geral de Testamentos, Liv. 2, fls. 21v-24, fl. 22v-23).


Fig. 2: Excerto do Testamento do Pe. Gaspar da Rocha (1606), Col. Registo Geral de Testamentos (ANTT)

 

Esta esta Ermida ou Capela do Senhor Jesus, infelizmente já desaparecida (vide Figs. 3 e 4), foi de acordo com uma publicação sobre as Igrejas da Cidade da Covilhã de Paulo Jesus (a quem agradecemos a cedência das imagens), existiu na Cidade da Covilhã até aos anos 60 do século XX, ao fundo do Largo D. Maria Pia, que hoje se designa como Jardim Público, no início da estrada que conduzia à Aldeia (actual Vila) do Carvalho, ou seja, na actual Rua da Indústria. Foi então demolida para alargamento da estrada e desenvolvimento habitacional da zona.

Diz o mesmo autor, guiando-se no texto da monografia « História da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição: Covilhã», de António Garcia Borges (2010), que se tratava de um construção simples, consistindo em pedra de cantaria, desconhecendo-se, porém, a data da sua construção. Interiormente tinha apenas o altar-mor, com a imagem do Senhor Jesus, orago da mesma capela.

Esta Capela pertenceu à antiga Paróquia de São Paulo e depois da extinção desta, em 1835, foi integrada na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, sendo arrolada como sua anexa e ermida pública em 18 de Março de 1928. 

Fig. 3: Antiga Capela do Senhor Jesus (Covilhã), fundada pelo Pe. Gaspar da Rocha (+1607), Capelão da Misericórdia de Lisboa (1580/1606), fot. Pub.: https://cidadedacovilha.blogs.sapo.pt/1401.html  (agradecemos a Paulo Jesus a cortesia na cedência das imagens).

Fig. 4: Antiga Capela do Senhor Jesus (Covilhã), fundada pelo Pe. Gaspar da Rocha (+1607), Capelão da Misericórdia de Lisboa (1580/1606), fot. Pub.: https://cidadedacovilha.blogs.sapo.pt/1401.html  (agradecemos a Paulo Jesus a cortesia na cedência das imagens).

 

Como se verifica também no Tombo dos Bens do Concelho da Covilhã, feito no ano de 1615 e publicado no blogue <http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/>, a propriedade do Pe. Gaspar da Rocha na Covilhã andava então efectivamente na posse do prior da Igreja de São Paulo:

«O Padre Joam Alvres prior de Sam Paulo (da Covilhã) pessue um pequeno de pomar que  esta a fonte de paulo afonso, que pessuio antes delle o p.e Guaspar da Rocha e lho deixou com emcargo de certas misas e pagua delle a este conçelho çem reis de foro em cada año».

Pub.: http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2013/09/covilha-os-tombos-xi.html

 

Rui Manuel Mesquita Mendes

Monte de Caparica, 7 de Março de 2021

 

 

domingo, 29 de março de 2015

CONSERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO EM ALMADA

Uma reflexão sobre casos concretos

 Ermida de São Sebastião (década de 1980) (SIPA)


Portugal, enquanto membro da UNESCO, foi um dos signatários da chamada Carta de Paris de 1972, ou seja da «Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural», na qual se determina no seu artigo 4.º que:
«Cada um dos Estados parte na presente Convenção deverá reconhecer que a obrigação de assegurar a identificação, protecção, conservação, valorização e transmissão às gerações futuras do património cultural e natural referido nos artigos 1º e 2º (ou seja monumentos, conjuntos, locais de interesse e património natural) e situado no seu território constitui obrigação primordial. Para tal, deverá esforçar-se, quer por esforço próprio, utilizando no máximo os seus recursos disponíveis, quer, se necessário, mediante a assistência e a cooperação internacionais de que possa beneficiar, nomeadamente no plano financeiro, artístico, científico e técnico».

Estas questões da conservação do património cultural, em especial do de natureza religiosa, levantam-se sempre na praça pública quando algumas vozes vêm contestar o apoio (ou mais concretamente o volume do apoio) dado pelo Estado e pelas Autarquias Locais à Igreja Católica para a conservação do seu património, seja este de natureza móvel, como no restauro de pinturas e alfaias e paramentos litúrgicos, ou imóvel, no restauro ou reedificação de actuais e antigos espaços de culto entretanto caídos na ruína ou adaptados a «funções profanas».

De facto, ainda que alguns não concordem com a perspectiva de haver uma relação estreita entre o Poder político e a Igreja em matéria da conservação do património cultural, tal relação é ainda assim a única viável em defesa do interesse público, é que uma coisa é não concordar com a Igreja Católica enquanto instituição e eu, como outros, em algumas coisas nem sempre com esta concordamos (no todo ou em parte), outra é querer omitir uma realidade histórica, artística e cultural que é visível em todo o país e se faz manifestar das mais diversas formas – mais de ¾ de todo património cultural português (material e imaterial) tem ou teve em um determinado período da sua existência uma função religiosa – património cuja recuperação e conservação implicará muitas vezes o seu regresso à sua função inicial, que era o de ser um espaço ou objecto de culto, como foi e é o caso, por exemplo, da problemática Ermida de São Sebastião de Almada, cuja recuperação e devolução ao culto pela Câmara Municipal de Almada em 2009 tem sido alvo de críticas por alguns almadenses.

O exemplo da acção da Câmara Municipal de Almada, a propósito quer das obras de reedificação da Ermida de São Sebastião, quer do restauro de obras de arte existentes na Ermida da Ramalha, é às vezes contestada pelo facto de, em ambos os casos, se tratarem de espaços que funcionam ou passaram a funcionar como lugares de culto, ainda que, no caso de S. Sebastião, se trate de um espaço que só parcialmente foi entregue à paróquia do Pragal (Cristo Rei), sendo a sua utilização regulada por «contrato em regime de comodato, com a validade de 30 anos que estabelece que a Fábrica da Igreja Paroquial do Cristo-Rei utilize a igreja para celebrações religiosas e a Câmara Municipal de Almada possa usar a ermida para promover espectáculos musicais e exposições», tal foi o caso do Festival «Sons de Almada Velha», o qual se realiza anualmente desde 2011 e que inclui sempre um ou dois eventos na Ermida de São Sebastião.

Por outro lado, ainda que nem todos partilhem desta visão, é um facto que aqueles dois espaços, no campo do património histórico e cultural de Almada, constituem-se em dois edificados únicos, nomeadamente pela sua antiguidade:
- a Ermida de São Sebastião, edifício classificado como Imóvel de Valor Concelhio / Interesse Municipal desde 1986, reedificada entre 1732 e 1739 pela Câmara Municipal de Almada, mas cuja construção original foi feita por ordem de D. João III em 1535 (aliás nota histórica que só foi possível de ser identificada por uma inscrição encontrada nos trabalhos arqueológicos realizados aquando da sua recuperação), constitui um dos poucos edifícios de matriz barroca joanina do núcleo histórico de Almada (núcleo profundamente abalado pelo terramoto de 1755);
- a Ermida da Ramalha é uma das mais antigas capelas do distrito de Setúbal, tendo sido edificada em 1456 e reedificada no século XVII;

Inscrição na tijoleira primitiva da Ermida de S. Sebastião
(Museu da Cidade)

Mas são também relevantes pelo valor artístico de alguns dos elementos que os compõem, como a cantaria barroca de São Sebastião e as telas barrocas da Ramalha; e ainda pela sua importância na cultura imaterial popular por estarem ligados à tradicional Romaria do São João da Ramalha, com origens certas no século XVIII, mas cuja tradição a faz remontar aos princípios da nacionalidade!

Maquete do restauro da Ermida S. Sebastião (2005-2009)
(Arquitecta Maria José Lopes)

Se quanto aos aspectos técnicos e de planeamento não posso falar, por falta de conhecimentos que me permitam discutir em pormenor os critérios e as prioridades municipais em matéria de política de recuperação e conservação do património, é ainda assim certo que existem no concelho de Almada outros espaços que mereceriam igual e urgente intervenção, como sãos os casos da:
- Fábrica do Caramujo, edifício industrial cuja construção, no fim do século XIX, foi pioneira no uso do betão armado em Portugal; do
Fábrica do Caramujo

- Lazareto Novo do Porto Brandão, considerado à época da sua construção (década de 1860), o mais moderno estabelecimento sanitário do género em toda a Europa; da
Lazareto Novo do Porto Brandão

- Ermida de São Tomás de Aquino, exemplar raro de arquitectura manuelina no concelho; ou ainda da

Ermida de São Tomás de Aquino (1980) (SIPA)

- Torre Velha de São Sebastião da Caparica, que além de Monumento Nacional e lugar de importância histórica singular (por exemplo no período da Restauração, tendo sido lugar da prisão de D. Francisco Manuel de Mello, figura maior das letras portuguesas do século XVII), é um dos raros exemplares ainda existentes em Portugal de uma fortificação militar do século XV e XVI construída segundo o modelo italiano, constituindo por isso um dos primeiros edifícios de cunho renascentista a ser edificado em Portugal!
 
Torre Velha de São Sebastião da Caparica (2015)

Estou consciente que muitas destas intervenções estariam e estão oneradas por questões económicas, políticas e administrativas que, ou ainda não foram possíveis de desbloquear, ou que obrigam a cuidado e pensado planeamento, pelo que as opiniões que usam estes exemplos para criticar a intervenção dos decisores municipais, ainda que admissíveis no campo da discussão das prioridades da política cultural local, são contudo menos razoáveis quando omitem a diferença na escala de intervenção ou subvalorizam a importância que o património religioso acima referido igualmente tem na história e cultura municipal.

Devemos ainda assim perguntar e eu pergunto: O que é mais correcto fazer na recuperação de um espaço que, com quase cinco séculos de existência, à excepção de um período de pouco mais de 100 anos, quase sempre funcionou como lugar de culto?
- Que se recupere o espaço, mas adaptando-o a uma outra função digamos mais «profana»; ou
- Que uma vez recuperado seja devolvido a essa função primeva;
Eu diria que «ambas as duas» (sic) são correctas, ou melhor que ambas as possibilidades devem sempre ser consideradas, adoptando a solução que melhor defenda o interesse geral da população e esse é, até melhor opinião, que uma vez recuperado o património deve ser valorizado, através da sua utilização e apropriação pelos munícipes, e deve ser conservado para não se perder o investimento feito na sua recuperação!

Aliás, estas duas vertentes, a da valorização e a da conservação, andam sempre ligadas, uma vez que se este património não for «apropriado pelas populações», acabará inevitavelmente por voltar a degradar-se, até pela simples razão de que a opinião pública não valoriza aquilo que desconhece ou que não é tido como «o seu património»!

Uma parte desta apropriação, sobretudo quando existem práticas religiosas já estabelecidas, sejam elas de carácter regular, como a missa dominical, ou extraordinário, como a realização de procissões e romarias, terá forçosamente ser através da utilização cultual destes espaços.


 

São Sebastião e Sagrada Família (telas do séc. XVII ?)
(Ermida da Ramalha)

É razoável que sendo Portugal um estado laico, ou seja que não tem uma religião oficial (situação que ainda hoje acontece por exemplo na Arábia Saudita ou no Bhutão), não discrimine os seus cidadãos e as suas instituições em função da sua prática (ou não) religiosa, e tal de facto acontece em Almada e em outras localidades do país, por exemplo através do apoio ao associativismo. Contudo um estado laico não pode, nem deve, ser alheio à realidade concreta da sua sociedade e cultura, sendo a sua obrigação proteger e salvaguardar de uma forma não discriminatória as manifestações culturais materiais e imateriais da sua população, tenham estas um cunho mais ou menos popular, mais ou menos erudito, mais profano ou mais religioso.

Em suma, querer reduzir a política cultural e de conservação do património a uma questão da separação da Igreja do Estado, não nos pode levar a ser insensíveis a uma verdade que é histórica e que deve ser compreendida e preservada, sob pena de os exemplos de destruição e ruína patrimonial, a que por vezes vamos assistindo, acabem por se tornar a norma, em vez da excepção!

É a minha convicta opinião, respeitando as demais, que aos homens que amam a cultura não se pede que sejam beatos, mas que sejam sensatos!


Por fim, e com a devida vénia ao historiador de arte Prof. Dr. Vítor Serrão, deixo aqui um excerto da opinião de alguém que, com os seus mais de 40 anos de reflexão sobre estas matérias, nos faz um retrato histórico, cultural e social objectivo sobre a questão do nosso território em ruínas, quando afirma que:
«O nosso país constitui, de há muito, um exemplo tristemente esclarecedor dessa sanha descontrolada de anti-património. As fases subterrâneas da História portuguesa pululam de ondas de descaracterização, de desleixo e de abandono de parte da sua memória arquitectónica, outrora significativa, que pura e simplesmente é deixada em estado de silenciosa agonia, em nome de uma ideia abastardada de progresso. Não só as guerras e as catástrofes naturais, os megassismos e os incêndios, as invasões estrangeiras e as fases de conturbação intestina, os maus restauros e as ondas de iconoclastia, contribuíram para essa perda do património comum, mas também a inconsciência das tutelas, a ambição de especuladores sem escrúpulos, a desmemória de muitas comunidades e a falta de instrumentos legais de preservação e de salvaguarda».

(Vítor Serrão, "Portugal em ruínas. Uma história cripto-artística do património construído", in Gastão de Brito e Silva, Portugal em ruínas, 2014, p. 12-13)

Compete a nós, os que defendem a cultura, não deixar que a «desmemória» permita continuar a «desconstrução do património» prolongando o estado de «anti-património», em que infelizmente algum dos espaços almadenses estiveram, e outros continuam a estar, há demasiado tempo!


RUI MANUEL MESQUITA MENDES
Caparica, 29 de Março de 2015


Outras leituras:
Vítor Serrão, "Portugal em ruínas. Uma história cripto-artística do património construído" [introdução ao livro Portugal em ruínas], 2014.
Gastão de Brito e Silva, Portugal em ruínas, 2014.
Rui Neves Caetano, "Desconstruindo o Património", in Actas do 2.º Encontro do Património de Almada e Seixal, 2014.




Algumas fontes:



Ângela Luzia [Coord.], Luís de Barros, Fernando Henriques e Telmo António [Textos], Exposição «Chão de Memórias», Museu da Cidade, Almada, Novembro, 2012