(José Hermano Saraiva discursa numa conferência na Academia das Ciências em outubro de 1981)
A propósito do maior ou menor
consenso no voto de pesar da Assembleia da República pelo falecimento de José
Hermano Saraiva (JHS), que no passado dia 25 de Julho de 2012 teve a oposição do
Partido Comunista Português, dos Verdes e do Bloco de Esquerda, faço aqui uma
reflexão sobre o modo como este e outros historiadores e homens da cultura têm
sido considerados pela elite cultural e política portuguesa em especial a ligada aos partidos da Esquerda portuguesa.
Como homem político não poderia estar mais longe das opções e pensamento de JHS, que aliás fazem parte de uma certa visão de Salazar como um «ditador soft» que ainda hoje vai fazendo escola em Portugal e que tende a subvalorizar as perseguições e prisões políticas, o imobilismo económico do corporativismo e acima de tudo o flagelo da Guerra Colonial que deixou muitas marcas nos homens que por ela passaram!
Como comunicador e divulgador da cultura portuguesa JHS será lembrado por muitos e bons anos, como ainda hoje nos lembramos de dois nomes da Televisão há muito desaparecidos mas que ainda povoam a memória dos portugueses: Prof. Vitorino Nemésio e João Villaret (imagens abaixo).
Já como historiador e
divulgador da História de Portugal digo, com toda a consciência, que dificilmente
aparecerá no nosso país outro igual a JHS, por muito que isso custe a uma certa
elite «leftie» que tende a ostracizar todos aqueles que não manifestam
simpatia pelos ideais de esquerda, mesmo os que abandonaram a política activa há
muito, e ainda mais os que, como o professor, nunca sofreram de amnésia
política e tiveram sempre a coragem de não fazer de conta que nada tiveram a
ver com o seu passado!
Nesse aspecto JHS, diga-se, não
foi só atacado pela esquerda política e cultural, mas também por uma certa
direita que jamais lhe perdoou a sua postura de «popularização» e «dessacralização»
na divulgação da História de Portugal e das suas figuras!
O currículo académico e
literário de JHS não o torna em «strictu sensu» o mais importante historiador
português de sempre, nem o próprio assim se via como tal, mas acredito que podemos colocá-lo
sem favor numa lista dos historiadores mais influentes, quer por terem feito a sua própria escola, quer por terem deixado importantes obras de referência, historiadores como:
- Os cronistas clássicos Diogo
do Couto, João de Barros, Rui de Pina, Fernão Lopes, Garcia de Resende, Damião de Góis, Gomes
Eanes de Zurara ou o Conde de Ericeira;
- Os historiadores
contemporâneos Alexandre Herculano, Luz Soriano, Pinheiro Chagas, Oliveira Martins, Gama
Barros, Oliveira Marques, Pedro de Azevedo, Fortunato de Almeida, Magalhães Godinho, Joel Serrão, Borges de Macedo, Veríssimo Serrão, Borges Coelho, Nuno Gonçalo Monteiro e António Reis.
- Os medievalistas João Pedro
Ribeiro, José Mattoso, Saúl António Gomes, Virgínia Rau, Isaías da Rosa
Pereira, Avelino de Jesus Costa, António Domingues de Sousa Costa, e Iria
Gonçalves;
Ou ainda os muitos arqueólogos,
historiadores da igreja, historiadores de arte, genealogistas, corografistas, historiadores
sociais e políticos e historiadores locais e regionais que têm produzido trabalhos inovadores e de grande qualidade.
(Os historiadores Veríssimo Serrão, José Mattoso e António Reis, que colaboraram na História de Portugal das Edições Alfa, coordenada por José Hermano Saraiva)
Ninguém poderá, de boa fé, acusar
JHS de «fraco historiador» ou «falso historiador», ou até, como tenho lido em
vários locais, de apenas «um bom contador de histórias», primeiro porque não só
foi alguém que verdadeiramente estudou as fontes, leu os clássicos e visitou os
locais (e quantos não existem «pretensos historiadores» que procuram fazer
análise histórica à custa das obras de terceiros, sem se quer se darem ao
trabalho de investigar as fontes históricas e visitarem os locais em concreto),
como também foi alguém que deixou um trabalho de mérito valorizado pela gerações presentes:
- Programas de TV como "Horizontes da Memória" (1971), que recebeu o Prémio da
Imprensa para o Melhor Programa do Ano, "Gente de Paz" (1978),
"O Tempo e a Alma", "Histórias que o Tempo Apagou" e
"A Alma e a Gente";
- O Livro "História
concisa de Portugal" (1978), com 25 edições e cerca de 180 mil exemplares
vendidos. Traduzido em espanhol, italiano, alemão, búlgaro e chinês. Citado por
diversos historiadores internacionais;
- A «História de Portugal» em
seis volumes, publicada em 1981 pelas Edições Alfa;
- O Livro "Portugal. A Companion History" (1997) em inglês, uma das poucas obras, junto com a "History of Portugal" de Oliveira Marques, sobre a História de Portugal escrita por um historiador português para um público internacional e que tem sido a primeira abordagem para muitos estrangeiros à História de Portugal e com excelentes críticas.
- Cerca de 20 títulos
históricos como "Uma carta do Infante D. Henrique", "O tempo e
alma", "Portugal - Os últimos 100 anos", "Vida ignorada de
Camões" ou "Ditos portugueses dignos de memória";
- Várias orações académicas apresentadas
à Academia Portuguesa de História (APH), de que foram publicadas sete, a mais
recente em 1988, intitulada "A crise geral e a Aljubarrota de Froyssar".
Em termos do seu legado como
historiador destaco alguns aspectos que considero mais relevantes:
- A problemática da luta de
classes e a preponderância dos «concelhos» na vida política portuguesa durante
a Dinastia Afonsina e sobretudo nas crises de 1245-1248 e 1383-1385;
- A valorização do universalismo
e importância do Infante D. Henrique, do Rei D. Manuel I e do poeta Luís de
Camões, vistos como figuras maiores de um determinado período da história de Portugal,
não apenas de uma forma laudatória mas também realista e humanista em que não
se procura esconder os aspectos menos positivos da sua biografia;
- A importância da história
local e das histórias locais na formação da história e património nacional;
- A importância da comunicação
social no reconhecimento e valorização dessa mesma história e património
nacional.
Diferente seria se JHS tivesse feito na sua produção histórica o elogio directo do Estado Novo, como fez por ex.º Joaquim Veríssimo Serrão nos últimos volumes da sua «História de Portugal» e mesmo assim ninguém no seu perfeito juízo poria em causa o inegável valor da obra científica de Serrão, autor de quase 300 trabalhos de investigação sobre temas da história portuguesa, grande parte deles centrados nos séculos XV a XVII, presidente da Academia de História durante cerca de 30 anos, detentor de vários doutoramentos e distinguido com o Prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais em 1995!
Refira-se que o mesmo Luís Reis Torgal (Vol. 2, p. 34) critica contudo JHS por nas suas Memórias ter feito referência menos abonatórias do Conselheiro Aristides de Sousa Mendes, sem contudo apresentar provas documentais, ora as «Memórias» podem até ter interesse histórico, mas não são textos históricos e não se regem pelos mesmo princípios, por isso parece-nos que esta crítica não faz muito sentido!
Neste particular os historiadores de arte portuguesa sabem bem como a falta ou desconhecimento de fontes levou alguns dos grandes historiadores a enquadrar e postular autoria de peças de arte que mais tarde se vieram verificar incorrectas.
Sobre outros historiadores e
homens da cultura portugueses também tem havido no passado uma tentativa de
colar o seu mérito académico ou artístico às suas opiniões ou visões políticas,
atitude que aliás manifesta uma verdadeira desonestidade mental, como se um escritor
ou um historiador tivessem mais ou menos valor conforme se situem mais ou menos
à esquerda, mais ou menos à direita. Os exemplos são diversos mas bastaria
apenas um nome para que o leitor se aperceba do que estou a dizer: Saramago.
Cabe na cabeça de alguém que na
Assembleia da República (AR) alguma das bancadas tivesse em 2010 votado contra
um voto de pesar pela morte de José Saramago, no entanto todos sabemos que, independentemente
do reconhecimento internacional que o Nobel lhe trouxe, a escrita de Saramago não
agradava a todos e as suas opiniões políticas também não, quer por causa da sua
visão de um «Comunismo conservador» muito pouco democrático ou ainda pelo seu ateísmo militante?
Não, de facto a AR votou por
unanimidade a favor do referido voto de pesar pela morte de José Saramago em 23
de Junho de 2010, como também o havia feito em 16 de Junho de 2005 pela morte
de Álvaro Cunhal, agora não foi este mesmo homem que durante décadas apoiou frontalmente
diversos regimes totalitários e anti-democráticos como a URSS, Cuba, República
Popular da China ou mesmo o regime genocida da Coreia do Norte?
(Álvaro Cunhal e José Saramago, dois grandes portugueses, homens de esquerda e da cultura homenageados por unanimidade pela Assembleia da República a quando da sua morte em 2005 e 2010)
Por estas e outras razões é justo perguntar que tipo de mensagem é que os partidos de Esquerda quiseram passar quando votaram contra o Voto de pesar pelo desaparecimento de José Hermano Saraiva? Que apenas os homens de esquerda têm valor cultural!
É importante que de uma vez por todas a Esquerda portuguesa deixe cair o seu sectarismo cultural, que em nada a beneficia antes afasta do essencial que é convencer os portugueses que um verdadeiro partido de esquerda também pode ter um projecto político de governação em democracia!
Rui M. Mendes
Caparica, 4 de Agosto de 2012
Fotos:
Textos:
Luís Reis Torgal, Estados novos, estado novo: ensaios de história política e cultural, Volume 2, p. 319-321
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