domingo, 5 de agosto de 2012

Só os homens e historiadores de esquerda têm mérito?


(José Hermano Saraiva discursa numa conferência na Academia das Ciências em outubro de 1981)

A propósito do maior ou menor consenso no voto de pesar da Assembleia da República pelo falecimento de José Hermano Saraiva (JHS), que no passado dia 25 de Julho de 2012 teve a oposição do Partido Comunista Português, dos Verdes e do Bloco de Esquerda, faço aqui uma reflexão sobre o modo como este e outros historiadores e homens da cultura têm sido considerados pela elite cultural e política portuguesa em especial a ligada aos partidos da Esquerda portuguesa.

Como homem político não poderia estar mais longe das opções e pensamento de JHS, que aliás fazem parte de uma certa visão de Salazar como um «ditador soft» que ainda hoje vai fazendo escola em Portugal e que tende a subvalorizar as perseguições e prisões políticas, o imobilismo económico do corporativismo e acima de tudo o flagelo da Guerra Colonial que deixou muitas marcas nos homens que por ela passaram!

Como comunicador e divulgador da cultura portuguesa JHS será lembrado por muitos e bons anos, como ainda hoje nos lembramos de dois nomes da Televisão há muito desaparecidos mas que ainda povoam a memória dos portugueses: Prof. Vitorino Nemésio e João Villaret (imagens abaixo).
 

Já como historiador e divulgador da História de Portugal digo, com toda a consciência, que dificilmente aparecerá no nosso país outro igual a JHS, por muito que isso custe a uma certa elite «leftie» que tende a ostracizar todos aqueles que não manifestam simpatia pelos ideais de esquerda, mesmo os que abandonaram a política activa há muito, e ainda mais os que, como o professor, nunca sofreram de amnésia política e tiveram sempre a coragem de não fazer de conta que nada tiveram a ver com o seu passado!

Nesse aspecto JHS, diga-se, não foi só atacado pela esquerda política e cultural, mas também por uma certa direita que jamais lhe perdoou a sua postura de «popularização» e «dessacralização» na divulgação da História de Portugal e das suas figuras!

O currículo académico e literário de JHS não o torna em «strictu sensu» o mais importante historiador português de sempre, nem o próprio assim se via como tal, mas acredito que podemos colocá-lo sem favor numa lista dos historiadores mais influentes, quer por terem feito a sua própria escola, quer por terem deixado importantes obras de referência, historiadores como:
- Os cronistas clássicos Diogo do Couto, João de Barros, Rui de Pina, Fernão Lopes, Garcia de Resende, Damião de Góis, Gomes Eanes de Zurara ou o Conde de Ericeira;
- Os historiadores contemporâneos Alexandre Herculano, Luz Soriano, Pinheiro Chagas, Oliveira Martins, Gama Barros, Oliveira Marques, Pedro de Azevedo, Fortunato de Almeida, Magalhães Godinho, Joel Serrão, Borges de Macedo, Veríssimo Serrão, Borges Coelho, Nuno Gonçalo Monteiro e António Reis.
- Os medievalistas João Pedro Ribeiro, José Mattoso, Saúl António Gomes, Virgínia Rau, Isaías da Rosa Pereira, Avelino de Jesus Costa, António Domingues de Sousa Costa, e Iria Gonçalves;
Ou ainda os muitos arqueólogos, historiadores da igreja, historiadores de arte, genealogistas, corografistas, historiadores sociais e políticos e historiadores locais e regionais que têm produzido trabalhos inovadores e de grande qualidade.

(Os historiadores Veríssimo Serrão, José Mattoso e António Reis, que colaboraram na História de Portugal das Edições Alfa, coordenada por José Hermano Saraiva)

Ninguém poderá, de boa fé, acusar JHS de «fraco historiador» ou «falso historiador», ou até, como tenho lido em vários locais, de apenas «um bom contador de histórias», primeiro porque não só foi alguém que verdadeiramente estudou as fontes, leu os clássicos e visitou os locais (e quantos não existem «pretensos historiadores» que procuram fazer análise histórica à custa das obras de terceiros, sem se quer se darem ao trabalho de investigar as fontes históricas e visitarem os locais em concreto), como também foi alguém que deixou um trabalho de mérito valorizado pela gerações presentes:
- Programas de TV como "Horizontes da Memória" (1971), que recebeu o Prémio da Imprensa para o Melhor Programa do Ano, "Gente de Paz" (1978), "O Tempo e a Alma", "Histórias que o Tempo Apagou" e "A Alma e a Gente";
- O Livro "História concisa de Portugal" (1978), com 25 edições e cerca de 180 mil exemplares vendidos. Traduzido em espanhol, italiano, alemão, búlgaro e chinês. Citado por diversos historiadores internacionais;
- A «História de Portugal» em seis volumes, publicada em 1981 pelas Edições Alfa;
- O Livro "Portugal. A Companion History" (1997) em inglês, uma das poucas obras, junto com a "History of Portugal" de Oliveira Marques, sobre a História de Portugal escrita por um historiador português para um público internacional e que tem sido a primeira abordagem para muitos estrangeiros à História de Portugal e com excelentes críticas.
- Cerca de 20 títulos históricos como "Uma carta do Infante D. Henrique", "O tempo e alma", "Portugal - Os últimos 100 anos", "Vida ignorada de Camões" ou "Ditos portugueses dignos de memória";
- Várias orações académicas apresentadas à Academia Portuguesa de História (APH), de que foram publicadas sete, a mais recente em 1988, intitulada "A crise geral e a Aljubarrota de Froyssar".


  

(Obras da autoria e coordenação de José Hermano Saraiva)

Em termos do seu legado como historiador destaco alguns aspectos que considero mais relevantes:
- A problemática da luta de classes e a preponderância dos «concelhos» na vida política portuguesa durante a Dinastia Afonsina e sobretudo nas crises de 1245-1248 e 1383-1385;
- A valorização do universalismo e importância do Infante D. Henrique, do Rei D. Manuel I e do poeta Luís de Camões, vistos como figuras maiores de um determinado período da história de Portugal, não apenas de uma forma laudatória mas também realista e humanista em que não se procura esconder os aspectos menos positivos da sua biografia;
- A importância da história local e das histórias locais na formação da história e património nacional;
- A importância da comunicação social no reconhecimento e valorização dessa mesma história e património nacional.

Não tendo produzido muitos trabalhos históricos versando especificamente a investigação do Portugal do século XX (excepção feita à sua História de Portugal e um ou outro trabalho de investigação), como aliás muitos outros historiadores do seu tempo, JHS manteve uma certa equidistância entre o seu pensamento político e a sua produção histórica, de modo que não se compreende como se pretende atacar JHS como um historiador com uma visão enviesada da história? Aliás várias vezes procurou desmistificar o modo como o Estado Novo procurou retratar certas figuras da história nacional! 

Mesmo sobre a natureza do Estado Novo, como refere Luís Reis Torgal no seu estudo «Estados novos, estado novo: ensaios de história política e cultura» (Vol. 2. p. 319-321), a «História de Portugal» dirigida por José Hermano Saraiva, «participada por historiadores de várias formações políticas mesmo de tipo marxista, no capítulo dedicado ao Estado Novo, da autoria do director da obra, não se surpreende nenhuma reflexão particularmente apologética do regime» e a não sugestão da ligação do salazarismo ao fascismo reflecte uma corrente de pensamento histórico também apresentada em outras obras do género como a «História de Portugal» de José Mattoso ou a «Nova História de Portugal» de Joel Serrão e Oliveira Marques nos volumes dedicados ao Estado Novo de Fernando Rosas, sem que no entanto não se deixe de referir a característica autoritária, corporativa e repressiva do Estado Novo. 
Diferente seria se JHS tivesse feito na sua produção histórica o elogio directo do Estado Novo, como fez por ex.º Joaquim Veríssimo Serrão nos últimos volumes da sua «História de Portugal» e mesmo assim ninguém no seu perfeito juízo poria em causa o inegável valor da obra científica de Serrão, autor de quase 300 trabalhos de investigação sobre temas da história portuguesa, grande parte deles centrados nos séculos XV a XVII, presidente da Academia de História durante cerca de 30 anos, detentor de vários doutoramentos e distinguido com o Prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais em 1995!

Refira-se que o mesmo Luís Reis Torgal (Vol. 2, p. 34) critica contudo JHS por nas suas Memórias ter feito referência menos abonatórias do Conselheiro Aristides de Sousa Mendes, sem contudo apresentar provas documentais, ora as «Memórias» podem até ter interesse histórico, mas não são textos históricos e não se regem pelos mesmo princípios, por isso parece-nos que esta crítica não faz muito sentido! 


Sobre o modo como JHS apresentava a história de Portugal nos seus programas televisivos, que alguns dizem demasiado romanceado, eu diria que considerando algumas obras literárias mais recentes do estilo «romance histórico», como por ex.º o «Memorial do Convento» (1982) ou a «História do Cerco de Lisboa» (1989), ambos de José Saramago, e ainda as obras de Luís Rosa, Domingos Amaral, José Jorge Letria, Miguel Real ou Pedro Almeida Vieira, entre outros, foi uma abordagem que acabou por fazer escola, uma escola que a historiografia brasileira e anglo-saxónica já conhecem há muito e que se devidamente enquadrada tem tanto valor na divulgação histórica como as teorias e interpretações que alguns dos nossos historiadores clássicos (p. ex.º Herculano e Oliveira Martins) produziram quando ainda não se conheciam em detalhe importantes fundos manuscritos (como por ex.º os arquivos do Vaticano) e que então por falta de melhores elementos levaram esses mesmos historiadores a fazer algumas interpretações particulares dos factos e figuras históricas.
Neste particular os historiadores de arte portuguesa sabem bem como a falta ou desconhecimento de fontes levou alguns dos grandes historiadores a enquadrar e postular autoria de peças de arte que mais tarde se vieram verificar incorrectas.

Sobre outros historiadores e homens da cultura portugueses também tem havido no passado uma tentativa de colar o seu mérito académico ou artístico às suas opiniões ou visões políticas, atitude que aliás manifesta uma verdadeira desonestidade mental, como se um escritor ou um historiador tivessem mais ou menos valor conforme se situem mais ou menos à esquerda, mais ou menos à direita. Os exemplos são diversos mas bastaria apenas um nome para que o leitor se aperceba do que estou a dizer: Saramago.

Cabe na cabeça de alguém que na Assembleia da República (AR) alguma das bancadas tivesse em 2010 votado contra um voto de pesar pela morte de José Saramago, no entanto todos sabemos que, independentemente do reconhecimento internacional que o Nobel lhe trouxe, a escrita de Saramago não agradava a todos e as suas opiniões políticas também não, quer por causa da sua visão de um «Comunismo conservador» muito pouco democrático ou ainda pelo seu ateísmo militante?
Não, de facto a AR votou por unanimidade a favor do referido voto de pesar pela morte de José Saramago em 23 de Junho de 2010, como também o havia feito em 16 de Junho de 2005 pela morte de Álvaro Cunhal, agora não foi este mesmo homem que durante décadas apoiou frontalmente diversos regimes totalitários e anti-democráticos como a URSS, Cuba, República Popular da China ou mesmo o regime genocida da Coreia do Norte?

  
(Álvaro Cunhal e José Saramago, dois grandes portugueses, homens de esquerda e da cultura  homenageados por unanimidade pela Assembleia da República a quando da sua morte em 2005 e 2010)


Por estas e outras razões é justo perguntar que tipo de mensagem é que os partidos de Esquerda quiseram passar quando votaram contra o Voto de pesar pelo desaparecimento de José Hermano Saraiva? Que apenas os homens de esquerda têm valor cultural!


É importante que de uma vez por todas a Esquerda portuguesa deixe cair o seu sectarismo cultural, que em nada a beneficia antes afasta do essencial que é convencer os portugueses que um verdadeiro partido de esquerda também pode ter um projecto político de governação em democracia!

Rui M. Mendes
Caparica, 4 de Agosto de 2012

Fotos:

Textos:



Sem comentários: